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A CRUEL PEDAGOGIA DO VÍRUS de Boaventura de Sousa Santos.



Queridos bibliófilos e queridas bibliófilas, bem-vindos ao canal Ler é Verbo. Hoje vamos falar sobre um livrinho... um ensaio na verdade, do Boaventura de Sousa Santos, A cruel pedagogia do vírus. Vamos lá.


Antes de mais nada gostaria de dizer que tenho uma ligação emocional com o Boaventura. Quando fiz minha monografia de fim de curso em Ciência Política, Boaventura foi um dos autores que estudei muito. O tema era a Politização da Justiça e esse autor português tinha escrito muito sobre o assunto. E desde então, há 15 anos, eu não lia nada dele. E quando surgiu esse ensaio fiquei bastante curioso.


Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático Jubilado (aposentado com rendimentos) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça.


É um cara senhor de 79 anos bem legal, que respeito muito, e que contribui intelectualmente para o crescimento da sociedade.


Essa obra faz parte de uma coleção chamada PANDEMIA CAPITAL. A Boitempo editorial, uma editora brasileira, fez uma série especial de e-books curtos, com reflexões a preços acessíveis, que abordam a crise atual pela qual estamos passando e suas implicações na política, na psicologia, na economia e nas relações humanas.


Chamou diversos autores como: Slavoj Zizek, Alysson Leandro Mascaro, Giorgio Agamben, Christian Dunker e outros.


Atualmente vivemos essa divisão política entre direita e esquerda. Algo que, particularmente, acho muito ruim para todos. Ruim porque o diálogo fica prejudicado. Se sou de direita e você de esquerda, nem quero ouvir o que tem a dizer e vice-versa. E eu garanto a vocês… não tem certo e errado nessa história. Sabe por quê? Por vários motivos. O que é direita e o que é esquerda? Nossa sociedade está completamente mudada, as ideias de capital, social, bem-estar, público e privado, já não são mais as mesmas. O que não podemos é ficar em uma miopia social e achar que só tem um lado correto. Temos que ter diálogo, pessoal. Se você é de esquerda, aí que deve ler ainda mais os livros de direita. Porque a solução está na mistura, no consenso, no meio termo.


Bom, digo isso porque este canal é o canal da tolerância. Aqui gosto de ler ideias de todos os lados e, se possível, aproveitar o que há de bom em cada uma. Só há uma coisa que não vou tolerar, comentários de ódio ou com xingamentos. Se quiser colocar sua opinião, ótimo, será bem-vinda. Mas se o fizer agredindo outros ou xingando, será bloqueado. Simples assim.


Digo isso porque a Boitempo, e os pensadores que ela trouxe nessa coleção, são inclinados à esquerda, ao social. Não representam minha atual visão, mas por respeito ao intelecto de Boaventura, eu li de coração aberto o livro e digo que há várias pérolas aqui. Então vamos ao livro.


Acho muito corajoso esses autores escreverem sobre a pandemia durante a pandemia. Porque algumas informações podem estar erradas, ou podem ainda não terem sido apuradas o suficiente para se afirmar algo. Boaventura sabe disso ao afirmar:


A pandemia confere à realidade uma liberdade caótica, e qualquer tentativa de aprisioná-la analiticamente fracassa porque a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela. Teorizar ou escrever sobre ela é pôr nossas categorias e nossa linguagem à beira do abismo.

Mas tudo bem, porque a ideia da coleção é refletir sobre o momento que vivemos e, se estão certas ou não, não importa, porque ao menos elas trazem um pensamento.


O título já achei legal: A CRUEL PEDAGOGIA DO VÍRUS. Ou seja, o que o vírus nos ensina é algo difícil, cruel. O que ele nos ensina mostra uma face dura da realidade. O ensaio tem 51 páginas e é dividido em 5 partes: 1a Vírus: tudo o que é sólido desmancha no ar, 2o A trágica transparência do vírus, 3o A sul da quarentena, 4o A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições e 5o O futuro pode começar hoje.


Ainda bem que ele trouxe o capítulo 5, que são as propostas de mudanças para o que vemos. Porque eu não gosto de artigos que só metem o pau e não apontam um caminho.


Boaventura começa com uma pergunta muito interessante:


Existe um debate nas ciências sociais sobre ser possível conhecer melhor a verdade e a qualidade das instituições de dada sociedade em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise. Talvez os dois tipos de situação sejam igualmente indutores de conhecimento, mas certamente nos permitem conhecer ou ressaltar coisas diferentes. Que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus?

Aí ele vem com um conceito genial. Chamado “A normalidade da exceção”. Ele afirma que vivemos em tempos de crise, uma crise eterna que se chama economia. Porque a palavra crise deveria evocar um estado passageiro. Algo que vem e passa. Tanto que o dicionário assim a define: estado passageiro, episódio desgastante, fase de transição. Mas o que vemos é que nos adaptamos à lógica do setor financeiro. E o setor financeiro vive sempre em crise… E, se parar para pensar, é isso mesmo. Quando você assiste ao jornal é uma eterna agonia. Porque jornalista sempre fala com uma voz grave de que algo urgente e calamitoso está acontecendo e ninguém faz nada a respeito. Mesmo notícias simples são levadas ao campo político e parece que o mundo está prestes a acabar.


Uma notícia irreal em um jornal fictício:

A chuva voltou mas parece que não foi suficiente. Após a seca, a grama cresceu apenas um centímetro. Mesmo com inúmeros protestos de moradores, o governo disse que os gastos com caminhão-pipa excedem o orçamento. A secretaria de meio-ambiente disse que o melhor mesmo é esperar a chuva chegar, pois é impossível regar toda a cidade. Enquanto isso a grama sofre e a população fica na mão, até quando?

É a crise do setor imobiliário, a crise do petróleo, a crise do câmbio, a crise da crise… a crise virou a nossa normalidade. E o vírus, que deveria ser uma crise, é a normalidade da exceção.


O capitalismo atual tem um grande desafio. Yuval Noah Harari também escreveu isso em seu livro: 21 lições para o século 21. Não existe outro modelo razoável no horizonte político, fora o capitalismo. Antigamente existia o autoritarismo, na forma comunista, versus a democracia, na vertente capitalista. Hoje não. Temos o capital em todos os lugares, de formas diferentes, sim, mas todos sendo regidos pelas regras do mercado financeiro. Produção e consumo. E isso é um problema para nós que nunca estamos satisfeitos com nada e um problema para o planeta que não vai aguentar muito mais tempo nesse ritmo.


Uma coisa que gosto no Boaventura é que ele é muito denso. Cada parágrafo dá pra fazer um vídeo e não vou conseguir falar sobre todo o livro aqui. Apenas os pontos mais interessantes, ou que me chamaram mais atenção, por isso sugiro a você que o leia.


Beleza, então temos essa sociedade regida pelos mercados. Uma sociedade capitalista que, na China, é um República-social-Capitalista e nas Américas é uma República-democrática-capitalista.


Hoje, o capitalismo consegue sua maior vitalidade no seio de seu maior inimigo de sempre, o comunismo, num país que em breve será a primeira economia do mundo, a China.

Estranho isso, né? De qualquer forma, ambos regidos pelo mercado. Aí vem um vírus. E o que o mercado faz para proteger você? O capitalismo é capaz de cuidar da sociedade? E qual tipo de governo está mais apto para cuidar do bem estar da população durante a pandemia? Porque com a pandemia, os mercados também sofrem. E agora? O governo fica entre a cruz e a espada. Deve cuidar do mercado ou da população?


E Boaventura faz uma conexão entre o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado, que um só pode viver se o outro existir… Aí, meu amigo, melhor você ler o livro pra entender.


Continuando, o livro, na capítulo 3, A SUL DA QUARENTENA, diz sobre os países de 3o mundo. Ele não usa essa expressão, mas é isso. Fala de continentes pobres como A América do Sul e a África. Porque existem doenças mais letais que o Corona, que assolam continentes inteiros e ninguém faz nada. Por exemplo, dê uma olhada nesse site: [https://www.worldometers.info] Ele traz números de várias paradas sobre o que está acontecendo no mundo. Sabia que hoje somos 7,795,362,600 pessoas no mundo? Quantos livros novos foram publicados este ano até agora? 1,349,809.


E aí também tem os dados sobre saúde. A AIDS, este ano, já matou 845.770 pessoas. E o Corona já matou 521,420, este ano. Ou seja, mais pessoas já morreram de AIDS do que de corona. E qual a situação da mídia para falar da AIDS? Por que ela ainda existe? Porque ela está à sul da quarentena. Então o que é estar a sul da quarenta? São os extratos sociais que mais sofrem com a doença, os trabalhadores de rua, os informais, os autônomos, as mulheres, os sem-teto, a periferia, a favela, os campos de refugiados, as populações deslocadas, as pessoas com deficiência, os idosos.


O elenco selecionado mostra duas coisas. Por um lado, ao contrário do que é veiculado pela mídia e pelas organizações internacionais, a quarentena não só torna mais visíveis, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento injusto que elas provocam. Acontece que tais assimetrias se tornam mais invisíveis em face do pânico que se apodera dos que não estão habituados a esse sofrimento.


E quais são as lições que Boaventura tira de tudo isso? Algumas.


O tempo político e midiático condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre. Esse modo pode nos ser fatal. As crises graves e agudas, cuja letalidade é muito grande e muito rápida, mobilizam a mídia e os poderes políticos e conduzem a medidas que, no melhor dos casos, resolvem as consequências da crise, mas não afetam suas causas. Pelo contrário, as crises graves, mas de progressão lenta, tendem a passar despercebidas mesmo quando sua letalidade é exponencialmente maior.

Ou seja, a crise do meio ambiente, a crise da malária, a crise da social dos excluídos, por ser de lenta progressão, recebe pouco tempo da política e da mídia, o que faz afundar cada vez mais as diferenças sociais e a piora do sistema ecológico global.


As pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga. É evidente que são menos discriminatórias que outras violências cometidas em nossa sociedade contra trabalhadores empobrecidos, mulheres, trabalhadores precários, negros, indígenas, imigrantes, refugiados, sem-teto, camponeses, idosos etc. Mas discriminam no que diz respeito tanto a sua prevenção como a sua expansão e sua mitigação. Por exemplo, os idosos são vítimas de darwinismo social em vários países. Grande parte da população do mundo não está em condições de seguir as recomendações da OMS para se defender do vírus, porque vive em espaços exíguos ou altamente poluídos, porque é obrigada a trabalhar em condições de risco para alimentar as famílias, porque está encarcerada em prisões ou em campos de internamento, porque não tem sabão nem água potável ou porque a pouca água disponível é para beber e cozinhar etc.
Enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro. Em particular, sua versão atualmente vigente – o neoliberalismo combinado com o domínio do capital financeiro – está social e politicamente desacreditada em face da tragédia a que conduziu a sociedade global e cujas consequências são, neste momento de crise humanitária global, mais evidentes que nunca. O capitalismo poderá subsistir como um dos modelos econômicos de produção, distribuição e consumo, mas não como único – e muito menos como o que dita a lógica da ação do Estado e da sociedade.
No atual momento de choque, as instituições financeiras internacionais (FMI, BM), os bancos centrais e o Banco Central Europeu incitam os países a se endividarem – mais do que já estão endividados – para arcar com os gastos de emergência, ainda que lhes permitam alargar os prazos de pagamento.
Após a crise, os governos estarão mais endividados e a crise financeira vai se abater com mais força, até vir outra crise e a roda começar novamente.
A extrema direita e a direita hiperneoliberal ficam definitivamente descreditadas (espera-se). A extrema direita tem crescido um pouco por todo o mundo. Caracteriza-se pela pulsão antisistema, pela manipulação grosseira dos instrumentos democráticos, incluindo o sistema judicial, o nacionalismo excludente, a xenofobia e o racismo, a apologia do Estado de exceção securitário, o ataque à investigação científica independente e à liberdade de expressão, a estigmatização dos adversários concebidos como inimigos, o discurso de ódio, o uso das redes sociais para comunicação política em menosprezo dos veículos e mídia convencionais. Defende em geral o Estado mínimo, mas é pródiga nos orçamentos militares e nas forças de segurança. Ocupa um espaço político que por vezes lhes foi oferecido pelo fracasso rotundo de governos provindos da esquerda, mas que se entregaram ao catecismo neoliberal sob a ardilosa ou ingênua crença na possibilidade de um capitalismo com rosto humano, um oximoro desde sempre ou, pelo menos, nos tempos de hoje.
Na presente crise humanitária, os governos de extrema direita ou de direita neoliberal falharam mais que os outros na luta contra a pandemia. Ocultaram informação, desprestigiaram a comunidade científica, minimizaram os efeitos potenciais da pandemia, utilizaram a crise humanitária para chicana política. Sob o pretexto de salvar a economia, correram riscos irresponsáveis, pelos quais, esperamos, serão responsabilizados. Deram a entender que uma dose de darwinismo social seria benéfica: a eliminação de parte das populações que já não interessam à economia, nem como mão de obra trabalhadora nem como fonte consumidora, ou seja, populações descartáveis, como se a economia pudesse prosperar sobre uma pilha de cadáveres. Os exemplos mais marcantes são a Inglaterra, os EUA, a Índia, o Brasil, as Filipinas e a Tailândia.
As pandemias mostram de maneira cruel como o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado para responder às emergências. As respostas que os Estados estão dando à crise variam de um para outro, mas nenhum pode disfarçar sua incapacidade, sua falta de previsibilidade em relação a emergências que têm sido anunciadas como de ocorrência próxima e muito provável. Estou certo de que nos próximos tempos esta pandemia nos dará mais lições e o fará sempre de forma cruel. Se seremos capazes de aprender, essa é por agora uma questão em aberto.

E o que fazer? Qual a solução disso tudo, Boaventura?


O que ele nos diz é que passada essa crise, não é o momento de se discutir alternativas para o futuro. Isso porque as pessoas estarão ávidas por voltar à normalidade, para assegurarem que o mundo que elas conheceram ainda não desapareceu. Ir ao cinema, tomar um chopp no bar, ir a um show… Mas esse retorno à normalidade não será igual para todos. Será possível recompor os mesmos rendimentos de antes?

O que aconteceu foi um descolamento entre processos políticos e processos civilizatórios. Os debates políticos passaram a limitar-se à gestão das soluções propostas ou impostas pela (des)ordem capitalista vigente, e os debates civilizatórios, na medida em que continuaram, passaram a ocorrer fora dos processos políticos. A solução é deslocar a política do mercado e fazer ela voltar ao debate civil.
Só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios será possível começar a pensar uma sociedade em que a humanidade assuma uma posição mais humilde no planeta que habita. Uma humanidade que se habitue a duas ideias básicas: há muito mais vida no planeta além da humana, já que esta é apenas 0,01% da vida existente no planeta; a defesa da vida do planeta no conjunto é a condição para a continuação da humanidade.
A nova articulação pressupõe uma viragem epistemológica, cultural e ideológica que sustente as soluções políticas, econômicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana digna no planeta. Essa viragem tem múltiplas implicações. A primeira de todas consiste em criar um novo senso comum, a ideia simples e evidente de que, sobretudo nos últimos quarenta anos, vivemos em quarentena, na quarentena política, cultural e ideológica de um capitalismo fechado sobre si próprio e das discriminações raciais e sexuais sem as quais ele não pode subsistir. A quarentena provocada pela pandemia é, afinal, uma quarentena dentro de outra quarentena. Superaremos a quarentena do capitalismo quando formos capazes de imaginar o planeta como nossa casa comum e a natureza como nossa mãe originária, a quem devemos amor e respeito. Ela não nos pertence. Nós é que lhe pertencemos. Quando superarmos esta quarentena, estaremos mais livres das quarentenas provocadas por pandemias.





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